segunda-feira, 28 de maio de 2012

SIN(T)ILIDADES POR ALEXANDRE TEIXEIRA MENDES

PRIMITIVO, PRIMORDIAL, PRIMEVO 

xamanismo e demonologia das origens 


Elisabete Pires Monteiro (Sully-sur-Loire, 1974) concede um lugar decisivo ao “arcaico” e ao “primordial”. Encontra-se aqui a parcela de acerto entre o mito e o rito. Os rituais, segundo vimos, tornaram-se, pois, no mundo grego arcaico, muitas vezes a origem dos mitos. Mais que um enquadramento das unidades de significado - os traços distintivos - importa considerar uma arte (originária e original) que nos remete às figurações do xamanismo (susceptível de ser apreendido enquanto manifestação). Trata-se de uma pintura que veicula a protociência da sociedade primitiva: a magia branca e a magia negra (considere-se, por exemplo, a feitiçaria, o encantamento, a bruxaria, o curandeirismo, a taumaturgia, etc.).


técnicas do êxtasse

 Entender estes quadros requer transladar-mo-nos à terra dos xamãs. São eles, efectivamente, que colocam o acento não apenas nas técnicas (difíceis) do êxtasse, mas também na tomada de consciência das forças do tabu e do maná, só se compreendem bem no contexto da experiência da demonologia das origens. “É verossímil - segundo Walter Shubart - que a religiosidade humana tenha-se despertado à vista do primeiro cadáver. Mesmo as formas mais primitivas da religião, no totemismo, por exemplo, atestam, ao mesmo tempo, o terror colectivo e a veneração cultual. O tabu engloba os conceitos aparentemente inconciliáveis de sagrado e de impuro. Os dois se unem no conceito mais amplo do inacessível, do intocável. Entrelaçam-se, assim, o medo divino e a repulsão demoníaca” (Eros e a Religião, 1975, p. 13). Retornemos todavia à consideração dos experimentos de uma arte (cena) "primal" como: primitivo, primordial, primevo. Um ante- tematizar, "mostrar" ao invés de "dizer".

 Ceux qu'ils restent
Acrílico sobre tela


tremendum et fascinans

Na pintura de Elisabete Pires Monteiro desvenda-se a familiaridade com um sistema simbólico do qual participa e cuja lógica é directamente a do xamanismo. Na sua arte circula num constante vaivém do olhar xamanístico para o olhar do pintor-etnólogo: o “mysterium tremendum et fascinans”. Falámos dum “primitivismo” mágico-religioso (inconsciente, espontâneo) da psique humana, da emergência de uma lógica (ou de uma cosmovisão) que opera por meio de técnicas arcaicas do êxtasse e coincide com os conjuros e a prestigitação, a adivinhação e a teurgia, os amuletos-talismãs e santos-e-senhas de magia. Devemos contudo notar que o xamã enquanto homo religiosus vive o influxo da sacralidade da natureza e a religião cósmica. Referimo-nos às viagens místicas ao céu e as descidas ao inferno, a conversação com Deus, seres semi-divinos e as almas dos mortos, etc., e isto é capital.
 Taumatúrgo, Xamã
Acrílico sobre tela

“sagrado selvagem”

Trata-se de determinar aquilo que esta pintura evoca: os xamãs - o inter e o trans-mundo - o motivo do sacrifício - o “sagrado selvagem” (Roger Bastide). Podemos aliás facilmente verificar, na arte de Elisabete Pires Monteiro, uma espécie de formalismo que nos remete para as simbolizações primordiais e os caracteres arquetípicos . É aqui que intervêm o inconsciente, a compulsão à repetição. O xamã - como Mircea Elíade admite - é o grande especialista da alma humana. Só ele a “ vê”, porque conhece a sua “forma” e seu destino” (El chamanismo e las técnicas arcaicas del êxtasis, Fondo de Cultura Económica, 1960, p. 23). Digamos que a problemática do xamanismo, a que o autor de “O Sagrado e o Profano - A Essência das Religiões” deu tanta importância, reaparece, uma vez mais, como via de acesso dos poderes mágico-religiosos.

 Trans-mundo
Acrílico sobre tela

visão, theoría 

De uma coisa podemos estar certos: a persistência de um certo pathos xamânico nas sociedades arcaicas. O que está em jogo, então, são as técnicas e ideologias mágico-extáticas, aquelas que, de facto, dizem respeito ao esquema cosmológico “clássico”. Note-se bem, e insistimos mais uma vez, neste ponto, que a própria etimologia do êxtasse alude ao voo ou viagem fora da nossa particularidade. O problema está posto em termos de uma a espiritualidade tribal que se reduz em última instância à dialéctica do transe. Podemos mesmo afirmar, partindo de F.M. Cornford, por exemplo, que a Grécia Antiga assimilava a verdade com a visão. Curiosamente as tradições xamãnicas também entenderam a verdade como visão (que revela e permite ser). Já Aristóteles havia procurado a origem do pensamento religioso na realidade das experiências psíquicas. O conceito de theoría, mediante o que descobre a suprema experiência do sagrado pelo homem, expressa em primeiro lugar a realidade física de uma visão, cuja semelhança com as festas religiosas colectivas de Olímpia e com as Dionisíacas ele mesmo sublinha.



Alexandre Teixeira Mendes Porto, 17 de Maio de 2012

sexta-feira, 11 de maio de 2012